❗️Eu, hipermoderno?
1.
Na hipermodernidade, não há escolha, não há alternativa, senão evoluir, acelerar para não ser ultrapassado pela "evolução": o culto da modernização técnica prevaleceu sobre a glorificação dos fins e dos ideais.
Gilles Lipovetsky, Os tempos hipermodernos, p. 57
No restaurante conversávamos sobre o passado, o futuro e o presente. O que teria sido, se (…)
Cômico, e ao mesmo tempo trágico, teria sido, se nossas escolhas tivessem sido outras. Lembramos quando começamos um projeto de escola teológica online num tempo em que ainda não havia EAD de Teologia no Brasil, muito menos cursos teológicos livres na internet. Éramos os primeiros e teria sido uma chance enorme de sucesso.
Verdade seja dita. Nós não iniciamos a escola para ser um negócio. No vocabulário de Lipovetsky, não era para acelerar nada, não queríamos evoluir nada. Fizemos porque acreditávamos que nosso chamado era ensinar e, claro, precisávamos pagar alguns boletos, os meus eram os da mudança da Alemanha pro Brasil.
Eu perseguia meus ideais de ensino, de teologia e de igreja, enquanto resistia a algo nas minhas costas me empurrando para frente com força, querendo que eu visse isso tudo como uma oportunidade de crescer, como que querendo me acelerar.
2.
A mitologia da ruptura radical foi substituida pela cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovação
Lipovetsky
Anos atrás alguém me disse que eu precisava de um sócio no digital. Este é o modelo do business de cursos online. Você é o produtor, pois detém o conteúdo, e seu sócio é o vendedor, pois detém a técnica de te tornar em um produto desejável.
Essa pessoa me contou como fulano fez 6em7 — tradução: jargão marketeiro para dizer que alguém faturou um milhão de reais em 7 dias — alavancando curso de beltrano e ciclano, todos pastores. A ideia parece justa e boa, afinal, você seria muito bem pago para ensinar boa teologia.
Me parecia honesto, como justa paga do meu esforço de vida. Agora em dezembro fazem 20 anos que prestei o vestibular para cursar teologia. Naquele ano desisti da engenharia elétrica, curso que me dediquei pra entrar e que me traria um futuro confortável, como o foi para grande parte dos meus ex-colegas de curso. Deixei Foz do Iguaçu e cheguei na FLT em São Bento do Sul com uma mala e duas caixas de papelão. Me lembro do prato de plástico de 1,99 e dos talheres simples que minha mãe me ajudou a escolher para trazer no meu enxoval de aluno. Reformei meu computador velho, coisa de luxo, pois a maioria não tinha um naquela época. Meus pais não estavam em boas condições financeiras e pegaram empréstimo para me ajudar a seguir meu chamado.
Seria pecado fazer 6em7 depois de tanto trabalho? Me lembro das vezes que a Lu, enquanto estávamos na Alemanha, tinha que escolher o que levava pra casa na esteira do supermercado e o que deixava para trás, pois o dinheiro não daria para tudo. Não era luxuoso, muito menos glamuroso morar no exterior com bolsa de estudante.
Porque não ganhar dinheiro com teologia agora que a oportunidade surgia?
Algo me dizia que eu deveria agradecer pela proposta e negá-la. Foi o que fiz.
3.
Anos se passaram e nosso curso online de teologia não se tornou um sucesso, na verdade desistimos dele por termos feito outras escolhas que foram importantes e necessárias. Algumas destas escolhas eu até me arrependo, outras não. Eu mesmo não desisti de lecionar aqui e ali no digital e lançar uma ou outra proposta mais tímida.
Os cursos, o instagram e agora a newsletter foram meios que utilizei — e sigo utilizando — para sair da minha bolha. Eu gosto, e acredito que preciso, ter contato com quem pensa diferente de mim. Semana passada participei do curso de Storytelling do Ivan Mizanzuk (do podcast Caso Evandro da Globo) e no meio da aula e se dá conta que eu estava inscrito e começa a me citar. É o tipo de coisa que massageia o ego da gente, é óbvio, mas é também a lembrança de que eu continuo aprendendo com o Ivan, o mesmo de 2016 dos podcasts fundo de quintal que fazíamos. Continuo aprendendo porque o Ivan poderia ter se rendido a algum guru do marketing, mas não o fez. Ele segue fazendo o que sabe fazer e ainda cumprimenta velhos conhecidos na rua da internet.
Não há nada de errado em ganhar bem pelo seu trabalho honesto, mas eu sinto que o tal 6em7 tem seu preço e eu não quis pagar pra ver.
5.
Dos objetos industriais ao ócio, dos esportes aos passatempos, da publicidade à informação, da higiene à educação, da beleza à alimentação, em toda a parte se exibem tanto a obsolescência acelerada dos modelos e produtos ofertados quanto os mecanismos multiformes da sedução (novidade, hiperescolha, self-service, mais bem-estar, humor, entretenimento, desvelo, erotismo, viagens, lazeres). O universo do consumo e da comunicação de massa aparece como um sonho jubiloso.
Lipovetsky
Às vezes eu sonho em poder estar em algum lugar paradisíaco ou em alguma grande cidade encantadora, à beira de uma praia de areia claras e água cristalina, ou num café parisiense com um último Macbook escrevendo teologia enquanto ouço música.
Eu sou também este ser hipermoderno e hiperindividualista que Lipovetsky denuncia. O universo do consumo, das possibilidades ilimitadas e da autorrealização me seduz. Eu pagaria por uma mentoria para ter o método infalível que me permitiria dedicar meu tempo, meus esforços e minha mente somente para a teologia.
Nossa geração acreditou nisso. Imaginamos, muitas vezes, que quando estivéssemos lá — se é que tínhamos um ideal de onde seria este “lá” —, então realizaríamos as nossas possibilidades de ser. Eu seria professor de teologia e poderia escrever os livros que todos gostariam de comprar. Eu seria o teólogo e teria os meios para falar de teologia no mais alto nível.
Mas este sonho não era um verdadeiramente um ideal, era uma sedução. Era um engano, uma espécie de devaneio misturado com atração erótica por algo que não seria realizável, mas que causava desejo e prazer ao ser simplesmente pensável e desejável. O eros é desejável e prazeiroso por si mesmo, ele é sedutor. Ele se satisfaz apenas com a imagem daquilo que deveria ser, mas nunca se torna. Ele não é ideal, pois não precisa se realizar. O ideal só é ideal, enquanto quer ser realizado.
Passamos a viver o futuro no presente e com isso nos consumimos em ansiedade.
6.
É esta ansiedade que mata a teologia. Ansiedade que nos impede de viver o hoje com suas dores e seus dramas. Ansiedade que sufoca a teologia que só se faz sob a tentação e a provação. Foram nos dias de dificuldade, de carência, de oposição, de solidão e de desesperança que a esperança nasceu. Foi no desespero de mim mesmo que a esperança me encontrou. Foi quando minhas forças se esvaíram que fui fortalecidos. Não foi o meu sucesso, os números, ou beleza estética, nem verborragica que demonstrou Cristo em mim, antes, foram as chagas e as marcas infligidas na alma, no coração e na mente — talvez não tanto no corpo, como com o apóstolo Paulo.
Se eu sonho em viver de teologia? Sim, sonho, e é bom sonhar. No entanto o trabalho teológico está em antecipar o ideal, enquanto sabe que ele não é antecipável. É aceitar que o real é doloroso enquanto se espera por um ideal, onde a dor e a angústia já não serão mais.
É assim que nós, hipermodernos, vivemos a tensão entre querer ser e realizar-se como tantos outros querem, entre curtir a vida e aproveitar os momentos belos dela, enquanto sabem que a vida é bem mais do que a conta no banco, o sucesso ou as realizações.
Ainda não tenho as respostas para todos os meus dilemas. Talvez não as terei, mas sigo em busca.
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Muito bom! Gosto bastante do Gilles Lipovetsky e acho que ele dialoga muito com Byung Chul Han. A hipermodernidade, para usar o jargão do Lipovetsky, só pode vir a tona com uma estruturação de um sujeito que se pensa unicamente como sujeito do desempenho. Fugir disso e repensar trajetórias é o desafio cotidiano.