❗️Você sabe com quem está falando?
1.
Senti meu coração palpitando, como que saindo pelo boca. Um calor tomava conta do meu peito. A mente explodindo. Cerrei os dentes e fechei o punho com força. Era como se as unhas cravassem na carne. As vozes ao meu redor se tornaram apenas barulhos ensurdecedores. Bati na mesa com a palma aberta e falei com voz firme, mas lábios e mãos trêmulas:
— Mostre-me na Bíblia que você tem razão!
Foi assim que eu perdi a razão e o argumento em alguns episódios na minha vida pastoral. Eu era jovem e imaturo e na impossibilidade moral de recorrer a uma autoridade pessoal, recorri a uma autoridade bíblica que eu supostamente tinha. Se Roberto DaMatta me analisasse — ainda bem que ele é antropólogo e não psiquiatra— certamente diria que fiz uso do famigerado “Você sabe com quem está falando?” Eu dei um carteirada teológica.
2.
O texto de hoje é um ensaio de um futuro livro que estou preparando. Então leia ele desta maneira, como uma espécie de “teste”. Se você gostar do teste me escreva, assim vou saber se devo continuar com ele.
Voltemos ao texto…
Começo esse livro com uma história minha, pois aprendi sofrendo, — e todo aprender é também um sofrer de algo que como um peso de fora nos marca — que todo conflito, injustiça e maldade não podem ser simplesmente varridos para debaixo de outros tapetes. Hipostasiamos males que nós mesmos causamos em muitos lugares: na religião alheia, no partido político do vizinho, na sogra e até no capeta. Não seria mais justo — ou então menos hipócrita — considerar que nós somos tão responsáveis pelos nossos males quantos também os sofremos?
3.
Pesquisei e escrevi minha tese de doutorado — o texto deste livro é em grande medida fruto desta pesquisa — numa fase idealista da minha vida. Naqueles anos em que acreditamos que tudo que precisamos pra mudar o mundo são ideais e bons princípios. Pensamos que, se todos fizerem o que é certo, tudo vai dar certo. Mas ao longo do caminho percebi que eu mesmo não consigo e não posso ser essa pessoa ideal. Além disto eu fui em muitas situações — como a que narrei acima — como o patrão que sabe melhor que todos o que promove o bem para a família. E por isso, toda injustiça e dor que eu causasse pelo jeito arrogante e egocêntrico deveria ser apenas um efeito colateral do bom remédio que eu estava ministrando.
É por isso que este livro trata não apenas de questões amplas e estruturais, históricas, teológicas e filosóficas, mas também de questões particulares, relacionais, comunitárias, antropológicas e sociológicas. Escrevo em primeira pessoa por essa razão. Eu sou parte do que analiso e escrevo como de dentro do furacão do problema. Não estou de fora e não sei melhor que outros a solução. Mas escrevo da cozinha da nossa casa, do coração das nossas relações para depois do café alcançar a rua e os problemas dela. Mas confesso, preciso começar falando da rua, dessa rua que se chama Brasil, na qual em cada esquina há uma placa ao senhor Jesus.
4.
No Brasil além de muitos problemas históricos, como pobreza, racismo, criminalidade e corrupção, os discursos políticos levam a população a uma guerra de trincheiras. As Igrejas brasileiras vivenciam diariamente esses problemas juntamente com toda a população. De que maneira nós cristãos e nossas igrejas podem contribuir para promover justiça na sociedade e convivência pacífica entre as pessoas?
Tomo como exemplos apenas algumas injustiças, como o racismo, a corrupção, a violência e as hostilidades políticas que demonstram que o Brasil sofre há muito tempo com divisões e inimizades. No entanto, esses termos são muito vagos para analisar a situação no Brasil, pois não conseguem explicar as nuances da situação no país. Eles também podem ser enganosos, pois tentam descrever algo que depende de vários fatores, como por exemplo as divisões e hostilidades políticas entre os apoiadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro.
Os analistas recorrem frequentemente ao termo populismo, que foi frequentemente aplicado às sociedades latino-americanas e supostamente é mais adequado para descrever a situação. No entanto, o populismo também não é inequívoco, como demonstra Rudolf von Sinner. Von Sinner distingue um populismo positivo (esquerdista) de um populismo depreciativo (direitista). O primeiro se caracteriza por um movimento popular surgido de baixo para cima, que possibilitaria uma verdadeira participação democrática, pois as vozes dos excluídos e marginalizados seriam ouvidas. O segundo, por outro lado, indicaria uma manipulação em massa do povo, em que uma personalidade carismática assume a liderança das massas. No entanto, é questionável se e até que ponto também governos e personalidades de esquerda, como Lula da Silva, não pertencem ao segundo tipo! Também me questiono se essa classificações não são produtos do nosso preconceito epistêmico. Quer dizer, o lote baldio do vizinho é sempre mais feio que o meu. Por isso jogo a geladeira velha no terreno dele, não no meu. O entulho social, assim como os conceitos desgrenhados — popular é bom, populismo é ruim — a coisa feia na nossa sociedade, sempre é empurrado pro quintal alheio.
5.
Populismo é frequentemente usado como "categoria de acusação" para incluir os neopopulistas do Partido dos Trabalhadores no mesmo grupo dos populistas clássicos do pós-guerra. Isto mostra que no senso comum brasileiro, o termo populismo tem um significado mais negativo. Na linguagem cotidiana, descreve uma liderança política personalista e carismática da nação, na qual o titular do cargo personifica a solução de quaisquer problemas anteriormente demonizados. Isso significa que ele adota um caráter messiânico para ganhar reconhecimento como o salvador da nação. Exemplos disso são os ataques de Carlos Lacerda a Getúlio Vargas, Fernando Collor de Melo à elite política, Lula da Silva à direita e Jair Messias Bolsonaro ao Partido dos Trabalhadores.
Essas divisões dentro da sociedade brasileira não são uma novidade do século XX, como descrito por Gilberto Freyre em "Casa-grande & Senzala", com ênfases positivas.[1] Para ele, a interação entre portugueses, escravos africanos e indígenas é fundamental para uma sociedade intercultural, onde pessoas de diferentes origens culturais se misturam em uma mistura diversificada. A mistura parece ser positiva enquanto se varre o racismo pra debaixo do tapete. Pintamos a crise como algo positivo, negando sua existência— “eu até tenho um amigo que é preto” — pois culturalmente a crise é “presságio de fim do mundo“.[2]
6.
Sérgio Buarque de Holanda interpreta a formação da sociedade brasileira através da ideia de "Homem Cordial", o indivíduo que determina a esfera da vida pública e privada por meio de seus sentimentos e emoções. Para o Homem Cordial, a esfera pública não é determinada apenas pela objetividade e racionalidade, mas ele toma decisões políticas, por exemplo, com base em seus sentimentos subjetivos, e, portanto, Holanda o descreve como uma pessoa impulsionada por assuntos do coração.[3] Ainda me pergunto se Holanda conscientemente plasmou seus antepassados calvinistas em sua teoria do coração, ou seriam apenas resquícios de Weber? O que na prática deve dar no mesmo.
Portanto, Holanda postula que a população brasileira não compreende e não adota os valores de uma sociedade liberal, pois é muito influenciada pelos laços familiares. A gramática da casa falaria mais alto ao coração do que a da rua. Um exemplo disso é o uso muito frequente da palavra "amigo". Ao ir às compras, o atendente é imediatamente abordado como "amigo". Se um policial solicita uma verificação na rua, a reação não é tratá-lo como "Senhor Policial", mas sim como "amigo policial". Assim, surge o problema do populismo, no qual o político - o presidente - se torna o grande "amigo" do povo. O político, portanto, não é mais visto como uma figura pública - uma pessoa no cargo. Não há mais distância entre os indivíduos privados e o político. Eles não são apenas amigos, mas são incorporados à própria família. Ao se tornar um membro das relações familiares, o político pode também servir como um pai da família. Ele sabe do que a família precisa. O pai da nação pode determinar de cima o que seus filhos necessitam. Ele pode bater na mesa, pois ele é a autoridade. Ele pode exigir autoridade, e quando não reconhecido como tal vem a carteirada: “Você sabe com quem está falando?“
7.
Roberto DaMatta diferencia a sociologia da casa da sociologia da rua. Em casa, há uma estrutura específica, com costumes e papéis diferenciados de cada morador. O pai é o senhor da casa, que sabe melhor do que todos o que é necessário. Ele personifica a lei ao determinar o que é correto e de acordo com os costumes. Ao contrário da casa, a rua é o local da desordem e agitação. Lá, praticamente não há lei, ou como Holanda descreve: ela existe para não ser seguida. Na rua, prevalece o "jeitinho brasileiro"[4], ou seja, encontrar uma saída para cada regra ou lei a fim de não precisar obedecê-la. DaMatta adiciona uma terceira dimensão sociológica: o além como "outro mundo"[5]. Os brasileiros são muito religiosos, como mencionei anteriormente em relação ao populismo. Um provérbio diz: "Deus é brasileiro". No entanto, a religiosidade dos brasileiros não é determinada por fronteiras dogmáticas e confessionais. Aqui também não há regras. As pessoas rezam e acreditam na Nossa Senhora Aparecida e fazem oferendas a Iemanjá no réveillon, uma orixá originária da religião iorubá da África. Tudo o que puder ajudar pode ser adicionado ao seu repertório pessoal de experiência religiosa. Esse sincretismo está muito presente na cultura brasileira. DaMatta entende o sincretismo como uma linguagem - como um meio que abre diferentes possibilidades para cada pessoa se comunicar com o além, em busca de soluções para seus dilemas pessoais e conforto em tempos difíceis, que não podem ser encontrados na rua, no ambiente de trabalho ou na política.[6] A experiência da fé é ponte entre rua e casa.
Fica evidente que a estrutura antropológica do pensamento brasileiro não é moldada por uma visão racionalista ou liberal do ser humano, mas sim pelo papel da família, dos amigos, dos sentimentos subjetivos e da religião. No texto original da minha tese de doutorado me dediquei a pergunta pela aceitação e aplicabilidade de teorias de justiça distributiva no Brasil e me debrucei a examinar a base antropológica dessas teorias. Neste livro minha pergunta é outra: como a fé cristã exerce a função de ser ponte entre a casa e a rua?
8.
Se você chegou até aqui - ufa! - talvez seja porque você queira saber para onde vai a minha proposta de livro. Numa próxima newsletter no futuro vou compartilhar outros trechos do livro, isto se você tiverem interesse. Me conta ai se gostou da ideia?
[1] Freyre G 1990.
[2] DaMatta R 2020, 25.
[3] Holanda S B 1995, 141-151.
[4] DaMatta R 1986, 93-106.
[5] DaMatta R 1997, 22-58.
[6] DaMatta R 1986, 107-118.
❤️🩹 Para onde vamos?
DESTINO: AJUDE O RIO GRANDE DO SUL. Há muitas campanhas bacanas acontecendo para auxiliar famílias no Rio Grande do Sul. Vou listar algumas que chegaram até mim e que posso recomendar a você:
💲Campanha de oração e ajuda financeira da Missão Evangélica União Cristã, entidade missionária a qual sou ligado e onde sou missionário. Todos os recursos serão direcionados para auxílios nas cidades onde atuamos na região norte do estado e para além dela através de pessoas conhecidas em outras parte do RS. A MEUC está arrecadando recursos pela chave PIX 47 99151-6508.
💲Igreja Luterana de Três Coroas. Fica na Serra Gaúcha, do lado de Gramado. Meu colega aqui na FLT Prof. Vitor Schell é da cidade e sua família é membra nesta igreja. São um importante ponto de apoio para as pessoas na cidade. PIX: igrejaevangelicatc@gmail.com
💲🛟 Campanha da Aliança Evangélica, que inclusive está com rede de voluntários e um programa bem organizado de ajuda humanitária. Confere lá no perfil deles: @aliancaevangelicabr
🛟 Compartilho três links muito úteis que o Tira do papel ☕️🐢 preparou:
Uma lista de recomendações para doar roupas e calçados.
Um perfil que conecta crianças perdidas com sua família.
💲O Matheus de Souza (dá uma olhada no texto de hoje dele!) também anunciou que há um canal para doações vindas do exterior através da prefeitura de Canoas: canal para doações internacionais.
🛟 Reforço o que o Matheus já disse: é impossível que você não possa ajudar de alguma forma.
🙏 E se você é cristão além de FAZER algo também lembre em oração Há mais chuva prevista e só de pensar nisso meu coração já aperta.
🚀 Aviso rápido
Marque na sua agenda o próximo encontro do Clube Teologia do Alemão. Dia 28/05 as 20h vou falar sobre Batismo na perspectiva de Lutero. Para isto vamos ler juntos um trecho do livro “O Cativeiro Babilônico da Igreja” (1520) de Lutero.
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