Questionando dicotomias
Um livro muito esperado, um tema espinhoso e previsões que se cumprem
“As únicas cartas que temos para jogar são aquelas que nos foram dadas pela história que nos antecedeu”
James K. A. Smith, Como habitar o tempo (2023)
❗️Questionando as dicotomias
Karl Marx refletindo sobre Feuerbach disse “Até agora os filósofos se preocuparam em interpretar o mundo de várias formas. O que importa é transformá-lo.” O filosofo materialista assume as dicotomias da modernidade. Para os racionalistas, séculos antes de Marx, o mundo poderia ser compreendido a partir da razão. Nossa estrutura racional corresponde à estrutura do mundo em que vivemos. Assim nasce uma teologia racional, o deísmo. Seus opositores, os empiristas, acreditavam que a verdade era acessível apenas pela experiencia. O ser humano seria uma tabula rasa a ser preenchido pelas experiência da vida. Os idealistas tentaram unir estas duas vertentes. É justamente esta síntese de tudo, proposta por Hegel, que está sob a crítica de Marx. Para ele o erro da filosofia até ali era excessiva preocupação metafísica (a teoria) e nenhuma preocupação com os problemas do mundo real (a prática).
Muitas teologias assumiram esta preocupação prática, alguns se perdendo no personagem. Outras, com medo de virar um personagem, se fecharam numa teoria sobre Deus. Seria, portanto, um retorno a Hegel nossa saída? Eu creio que não.
1.
Vamos ver algumas dicotomias clássicas na teologia. A primeira é entre razão (ou racionalidade) e ação (ou vivência). O pressuposto do fazer filosófico é a capacidade de abstração, logo torna-se necessário separar claramente entre objeto e as qualidades do objeto. Por exemplo, nós só conseguimos imaginar para um objeto físico qualidades como tamanho, textura, cor, temperatura, qualidade, utilidade. Nunca diríamos que um copo de água é verdadeiro. Nós até poderíamos imagina um copo de água falso. Algo plantado para nos enganar. Mas no dia-a-dia eu nunca vi alguém falar de um copo de água falso, muito menos verdadeiro. Vou dar um exemplo bíblico.
“A verdade (emet / אמת) na Bíblia Hebraica se relaciona com a “qualidade dos objetos”, não com as palavras. Estradas, pessoas e sementes de uva são descritas como verdadeiras, enquanto a atração física e a segurança de um cavalo são rotuladas como falsas. Usada dessa forma, a verdade descreve objetos em que se pode confiar. Esses itens verdadeiros terão um desempenho consistente como deveriam, “apesar das dificuldades geradas por uma mudança nas circunstâncias”[8]
O que ele quer dizer com isso? O pensamento dos hebreus no Antigo Testamente e consequentemente também no Novo – lembrando que eles eram todos judeus – também faz distinções parecidas com as que os filósofos faziam. Porém, a preocupação deles não era com a abstração de uma “verdade”, mas da aplicação da verdade no todo da vida. Verdade que não é vivida, não é verdade. Por isso uma estrada pode ser verdade, pois leva para o lugar certo.
2.
A forma de ensinar e aprender hebraica é muito diferente da nossa. O verbo aprender quando é conjugado no tronco resultativo (hebraico não conhece “tempos”, mas qualidades dos verbos) deve ser traduzido por “ensinar”. Quem aprendeu, ensina. Sofrer o aprendizado habilita você a causar o aprendizado em outro, isto é, ensinar. Por isso o conhecimento, para a mente hebraica, é adquirido de maneira performática (isto é, vivido, imitado, repetido) como em narrativas e histórias onde o ouvinte é inserido como alguém que acaba se tornando parte daquilo para então aprender e imitar. Assim a forma de apresentar o conhecimento não é descritiva e abstrata, mas corporificada e vivenciada. Histórias mostram a verdade e a justiça como qualidades vividas, não como conceitos a serem explicados. É isso que eu quero dizer com “sofrer” o conhecimento de Deus. Deus fala conosco não por meio de um conceito de verdade. Ele não enviou um dicionário para nós com um verbete sobre a verdade. Ele enviou seu filho, a verdade a nós. Nós cremos na verdade, que é Cristo (Jo 14.6). Ele dá testemunho da verdade (Jo 18.37). O Espírito de Cristo e do Pai é a verdade que fala da verdade (Jo 15.26; 1Jo 5.6) Jesus não é um conceito abstrato a ser comparado com outros conceitos de um livro qualquer. Por isso Pilatos não pode entender Jesus (Jo 18.38), pois não cabe na sua filosofia. Porém os que confiam em Jesus são da verdade (Jo 18.37). Quem crê em Jesus é da verdade pois a palavra hebraica para verdade (“emet”) também expressa lealdade e fidelidade. Em Gênesis 24.27 Deus é louvado pela sua fidelidade (“emet”). Na conhecida passagem de Habacuque 2.4 o justo viverá pela sua fidelidade (“emunah” vem de “emet”). Ou seja, quem está numa relação de fidelidade com Cristo é da verdade. Eu posso até explicar isso para você nesse texto, mas não fará o menor sentido se o Espírito da Verdade não tocar no seu coração e te convencer de que Deus é digno de confiança e quer que você participe desta verdade.
3.
Uma outra separação grave que fazemos e que é muito comum no nosso tempo é entre ser e fazer. Esta dicotomia é perceptível nas discussões sobre a relação entre a fé e obras. Você já deve ter ouvido alguém argumentar que, se somente a fé justifica, então as obras são desnecessárias. E também já deve ter ouvido o argumento contrário, que afirma que fé que não produz obras não é fé de verdade. Ou seja, temos que fazer obras como prova de fé. O ping-pong aqui é infinito. Há os que defendem ainda que não basta a fé em Cristo, ela precisa passar por um critério de formalidade tão grande que poucos escapariam. Ninguém com juízo e temor de Deus diria que a ortodoxia é inútil. Mas também é absurdo defender que a ortodoxia salva alguém. Ser ortodoxo pode muito bem se tornar em uma obra que eu faço para tentar me justificar perante Deus. Você se orgulha da sua ortodoxia! A oração do fariseu poderia receber uma nova versão. Um ortodoxo está em pé orando. Ele diz: “Obrigado Deus, pois eu não sou como aqueles hereges que defendem outras posições teológicas das quais eu e minha denominação discordamos. Só compro livros da editora aprovada. Só vou nas conferências que tem o selo de qualidade”. Cuidado para que, ao afirmar nossa confissão de fé alicerçada nas Escrituras, não acabemos transformando-a em um deus para nós.
4.
Do outro lado estão os que dizem que ela a fé não tem valor algum sem a ortopraxia. Aqui poderíamos citar vários textos bíblicos: bom samaritano, o rico e o Lázaro, o juízo sobre os bodes e as ovelhas. Todos eles são duros ao afirmar que negar o amor ao próximo é negar a Deus. Ninguém em bom juízo e genuína fé cristã diria que não devemos amar ao próximo nos esforçando pelo bem dele em todos os sentidos práticos. Mas aqui também a prática do Evangelho pode se tornar mera obra morta. A partir do momento em que minhas ações deixarem de ser uma resposta do coração em gratidão, amor e alegria e passarem a ser um programa, uma tarefa, uma agenda que eu devo cumprir eu crio uma confusão. Eu transformo o imperativo do amor ao próximo em evangelho e passo a ensinar que viver o evangelho é fazer coisas. O pendulo da dicotomia vai para o outro lado. A beleza do amor ao próximo se perde na obrigação de se manter uma agenda de ativismo. Quando o orgulho brotar no coração e os sentimentos de comparação com os que fazem menos se tornarem fortes você está à beira do precipício. Você transformou o efeito do evangelho em uma obra morta, ou pior, você o transformou em um ídolo.
5.
Existe uma solução para este dilema? Eu creio que há um caminho, mas sobre isso vou falar semana que vem.
🧠 Antes que eu esqueça…
Uma breve reflexão da Beatriz Guarezi, da Bits to Brands:
Além surpreendente do envolvimento real das pessoas com a inteligência artificial, segundo a Forbes a chamada “sextech” é uma indústria de mais de 30 bilhões de dólares, que deve dobrar de tamanho nos próximos três anos. A Intimidade Artificial já está entre nós e, assim como a sua “irmã” Inteligência, se espalha muito mais rápido do que somos capazes de compreendê-la. Que dirá chegar a um consenso sobre o seu impacto. Nesse novo contexto, a solidão deixa de ser um sentimento e se torna uma oportunidade de negócio, um problema a ser resolvido pela tecnologia, uma “dor” de uma “persona” em algum planejamento de comunicação.
Isso me lembrou muito do que abordei na semana passada (se perdeu leia aqui) a respeito da IA poder ser equiparada à pessoa por conta do vinculo afetivo. A realidade já está aí, só falta quem proponha isto de forma organizada, filosófica e depois também, política e jurídica.
Leia o texto completo da Bia aqui:
💡Isso aqui me ajudou
Eu comecei a newsletter de hoje com James K. A. Smith. Não escondo minha predileção pelo trabalho dele. Não sou um “estudado” em fenomenologia e existencialismo como ele, mas gosto da forma como ele consegue dialogar com essas tradições filosóficas.
Novo livro dele está muito especial. Se você gosta das reflexões do Byung Chul-Han (como eu hehe) sobre tempo, sociedade e vida acelerada, autoexploração, vai curtir o “Como habitar o tempo”” do Smith.
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