[Dicionário Teológico #04] A Criação
Uma curadoria rápida sobre a criação na teologia bíblica e sistemática
A fé na criação é um tema desafiador em mundo onde ciência e fé frequentemente parecem estar em conflito. Visões naturalistas tendem a defender a ideia de que o universo é fruto de eventos aleatórios e sem propósito, enquanto a fé cristã afirma que Deus criou todas as coisas com propósito e significado. É possível conciliar essas visões?
A criação não é apenas uma questão de "como" ou "quando", mas de "quem" e "por quê". Ela nos remete a um Deus que livremente trouxe o universo à existência como um ato de amor e graça. A partir dessa perspectiva, refletir sobre a criação é também refletir sobre nosso lugar no mundo e nossa responsabilidade diante dele.
A Criação na Bíblia: muito além de Gênesis
Embora os relatos de Gênesis 1-2 sejam os mais conhecidos e centrais para o tema, o a fé na criação permeia toda a Bíblia. Nos Salmos, por exemplo, encontramos louvores ao Criador com afirmações importantes sobre o ser humano (Salmo 8), reflexões sobre sua providência (Salmo 104) e celebrações da harmonia entre o Criador e a criação (Salmo 19). Na literatura profética, especialmente em Isaías 40-66, a criação é frequentemente associada à salvação, mostrando que o Deus que criou é também o Deus que redime.
'Ele se assenta no seu trono, acima da cúpula da terra, cujos habitantes são pequenos como gafanhotos. Ele estende os céus como um forro e os arma como uma tenda para neles habitar. Será que vocês não sabem? Nunca ouviram falar? Não contaram a vocês desde a antiguidade? Vocês não compreenderam desde que a terra foi fundada? '
Isaías 40:21-22
No Novo Testamento, o a fé na criação é trazida à sua relação com Cristo. João afirma que "todas as coisas foram feitas por intermédio dele" (João 1.3), e Paulo descreve Cristo como o mediador da criação (Colossenses 1.16). A nova criação inaugurada pela ressurreição de Cristo aponta para a consumação da história em Apocalipse, onde Deus promete: "Eis que faço novas todas as coisas." (Apocalipse 21.5)
Rochus Leonhardt destaca como as ideias de creatio continua (criação contínua) e providência divina são centrais na teologia bíblica, especialmente em Isaías. Deus não apenas cria no início, mas sustenta e governa a criação continuamente, intervindo na história e conduzindo-a à redenção.
Criação: um ato livre e gracioso de Deus
A teologia cristã enfatiza que a criação é um ato livre de Deus. Esta é a razão da fé cristã afirmar a creatio ex nihilo (criação a partir do nada). Deus não cria por necessidade, mas por amor, como um dom que expressa sua soberania e graça. W. Pannenberg observa que, ao contrário de visões panteístas ou dualistas, a criação bíblica é contingente: Deus poderia não ter criado, mas escolheu fazê-lo. Isso destaca que a existência do mundo depende inteiramente de Deus e não de si mesma.
"Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas (...) e ainda [as] conserva (...) e tudo isso faz unicamente por sua paterna e divina bondade e misericórdia."
Martinho Lutero, Catecismo Menor
Para o reformado Martinho Lutero a criação e a justificação pela fé andam juntas. Da mesma forma como somos salvos unicamente pela graça, o mundo foi criado pela livre graça de Deus, sem mérito ou pré-requisito. Essa perspectiva ressalta que a dignidade da criação não vem de sua utilidade, mas de ser obra do Criador. Como Oswald Bayer defende, o caráter gracioso da criação reflete a bondade de Deus em todas as suas ações, sejam elas criativas ou redentoras.
A criação e o ser humano: um chamado ético
A fé na criação nos desafia a repensar nossas ações no mundo. Wolfgang Schoberth observa que o que pensamos sobre o ser humano determina como o tratamos. Se o mundo e a humanidade são frutos do acaso, a decisão sobre como vivemos recai sobre o indivíduo e suas escolhas particulares. Mas, se a criação é um presente de Deus, cuidar do mundo e do próximo não é apenas uma questão relegada ao indivíduo, mas um chamado ético à toda a comunidade humana, mais especialmente à comunidade dos que creem no Deus criador e redentor.
A ética da criação também se estende à nossa relação com os recursos naturais e os seres vivos. O relato bíblico não legitima a exploração desmedida, mas nos chama a cultivar e guardar o jardim de Deus (Gênesis 2.15). Os animais, criados pelo mesmo sopro divino, compartilham conosco a dignidade de serem obras de Deus e, como nos lembra Isaías 65.25, também eles participam da esperança da nova criação.
Criação e escatologia: novos céus e nova terra
A teologia cristã enxerga criação e redenção como unidade indissolúvel. Deus não apenas cria, mas também redime e cria novas todas as coisas. Ele preserva sua criação mesmo em meio ao pecado e ao caos, prometendo que na consumação da história tudo se fará novo.
"Eis que faço novas todas as coisas." (Apocalipse 21.5)
Refletir sobre a criação é um chamado para entender a relação entre a fé em Jesus e nosso lugar no mundo. A confissão de que Deus é o Criador nos chama a viver com gratidão, cuidado e esperança, reconhecendo que o mundo é um presente do Senhor para ser cultivado com responsabilidade.
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Um excelente panorama da teologia bíblica da criação: Konrad Schmid (org.). Schöpfung. (UTB 3514). Tübingen, Mohr Siebeck, 2012.
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