[Dicionário Teológico #03] História da Igreja
Uma curadoria para quem quer começar a estudar história da igreja
Eu sempre começo as aulas de história no primeiro semestre da graduação em Teologia com uma promessa (eu sei, é perigoso, mas faço mesmo assim): “você vai gostar de história da Igreja.”
A maior dificuldade que muitos passam, e talvez por isso não gostem de história, é com a atualidade da história. História não é sobre fatos brutos do passado, datas, nomes e lugares que precisam ser decorados.
Neste post eu vou entregar para você: uma definição do que é história da igreja, o que é história como ciência e qual sua relação com a teologia. E no final a cereja do bolo: recomendação e análise de algumas obras em português.
Uma breve definição de história
Heródoto chamou sua produção “histórica” de ἱστορίης ἀπόδεξις (histories apodexis, traduzindo: publicação de uma pesquisa)[1]. Daí é que vem o termo “história”. Ao analisarmos com mais cuidados o termo ἱστορίης encontramos um paralelo direto com ἵστωρ (histor) “aquele que vê” ou também “aquele que sabe”. Este sentido provêm da origem indo-européia da palavra na raiz wid-, weid- “ver”. Herodoto “procurou saber” e este é o sentido original do termo história.[2] Porém isto ainda não responde à pergunta sobre o que é escrever história.
O problema da pesquisa histórica é desde a antiguidade conhecido. Tucídides (460/54-400 a.C.) já havia dito que a pesquisa sobre a guerra do Peloponeso foi trabalhosa, pois "as testemunhas dos mesmos acontecimentos não diziam o mesmo sobre a mesma situação, mas de acordo com a sua memória e favor."[3] O mesmo podemos dizer a respeito dos autores dos evangelhos sinóticos. Inclusive encontramos uma menção ao trabalho historiográfico de Lucas no seu evangelho: “me pareceu bem, depois de acurada investigação (παρηκολουθηκότι [parekoluthekóti] = “perseguir com a mente, seguir datas e fatos”) de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem” (Lc 1.3). Ou seja, um mesmo evento suscita diferentes interpretações.
Não só as fontes históricas sobre um mesmo evento são diversas, mas também as a forma com que os resultados da pesquisa são apresentados. O que o historiador quer comunicar com seu escrito? Uma apresentação oral, um artigo científico ou uma memória tem gêneros diferentes e propósitos diferentes. Não se pode, apenas pelo gênero, dizer que isto é “história”, enquanto aquilo não.
O objetivo de uma apresentação histórica é, de acordo com um dos pais da historiografia moderna o alemão Johann Gustav Droysen (1808-1886) a compreensão. Apresentar a história é abrir sua compreensão, torná-la entendível para hoje. É claro que muitas interpretações são possíveis, por isso os consensos também são importantes, uma vez que buscam dirimir dúvidas e trazer clareza, mesmo quando a interpretação de detalhes não seja clara.
Finalidade do estudo da história não é apenas entender o passado, mas compreender o presente e o futuro. Decisões sobre o futuro dependem do conhecimento histórico.
1.1 A história como ciência
O positivismo do século XIX defendia a objetividade científica. Esta objetividade significava que a busca pela verdade através do método garantiria que o acesso imediato ao objeto de estudo. Em outras palavras, se você usar o método correto vai conseguir acessar a verdade em si mesma. Hoje percebemos como esta visão de ciência é ingênua. O método continua fundamental na busca pela verdade, no entanto, a verdade não se deixa acessar facilmente. Ela não é um objeto que dispomos para manipulação laboratorial.
A pergunta sobre a verdade colocada por Pilatos no julgamento de Jesus já aponta para o problema da objetificação da verdade (Jo 18.38). Jesus dá testemunho da verdade, sendo ele mesmo a verdade, por ser ele mesmo Deus (Jo 18.37, cf. 14.6ss). A verdade não é um objeto que se permite manipular. Ela só está acessível por meios. Isto não quer dizer que não existam afirmações verdadeiras ou falsas. Que 1+1=2 precisa ser verdadeiro é auto-evidente. Já a afirmação “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil” pode ser objeto de disputa sobre sua veracidade. Agora afirmar que o mesmo Pedro Álvares avistou a região de Porto Seguro em 21 de abril de 1500 de acordo com o relato de Pero Vaz de Caminha é verídico. Não temos acesso direto para afirmar se Pero Vaz contou os dias corretamente, por exemplo. Não temos como dizer se esta nau portuguesa foi realmente a primeira a avistar terras brasileiras. O acesso que temos ao fato histórico é mediado pelas fontes. Por isso a história é essencialmente uma metodologia de interpretação das fontes e enquanto metodologia de estudo de fontes históricas e apresentação de interpretações desta é uma ciência, é a ciência historiográfica e como tal tem seus próprios dilemas, como bem aponta Paul Ricoeur:
"A história só é história na medida em que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que o seu sentido se mantém confuso; misturado... A história é essencialmente equívoca, no sentido de que é virtualmente événementielle e virtualmente estrutural. A história é na verdade o reino do inexato. Esta descoberta não é inútil; justifica o historiador. Justifica todas as suas incertezas. O método histórico só pode ser um método inexato.... A história quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica. Finalmente, esta reflexão procura justificar todas as aporias do ofício de historiador, as que Marc Bloch tinha assinalado na sua apologia da história e do ofício de historiador. Estas dificuldades não são vícios do método, são equívocos bem fundamentados.[4]
1.2 Relação entre história e teologia
História da Igreja é uma das mais novas disciplinas do currículo teológico. Apenas em 1720 surgiu em Tübingen uma cadeira específica de História da Igreja. Antes o seu assunto era visto em conjunto com outras disciplinas. Não é à toa que uma das definições clássica de história da igreja daquele período era formulada em intima relação com os assunto de teologia sistemática.
Já para Karl Barth, possivelmente devido à sua critica à concepção histórica dos liberais, a história da igreja deveria ser apenas uma disciplina auxiliar da exegese, dogmática e teologia prática.[5] Em contraponto a Barth o teólogo luterano Gerhard Ebeling compreende a história da Igreja como a história da exposição das Sagradas Escrituras. Neste mesmo sentido também Heinrich Bornkamm diz que ela é a história do evangelho e seu efeito no mundo, enquanto Martin Schmidt a define como a história da proclamação e da concretização no mundo.
Estas definições não querem separar História da Igreja da História geral, pois não entendem a pregação como apenas o evento de fala e interpretação da Bíblia, mas como a vida da igreja e como ela se insere na sociedade.
Portanto não se trata de uma história da interpretação bíblica, mas uma História do que o ensino bíblico fez na história ou mais precisamente uma história da ação de Deus na história pelos meios da Palavra.
[1] MARKSCHIES, Christoph. Arbeitsbuch Kirchengeschichte. Tübingen: Mohr Siebeck, 1995, p. 2
[2] LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7a. Ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2013, p. 22.
[3] Tucídides, Hist. I 22,2 apud MARKSCHIES, Christoph. Op. Cit., p. 3.
[4] RICOEUR, Paul. Histoir de la philosophie et historicité, in: ARON, Reimond (org). L’historie et ses inteprétations. Entretiens autou d’Arnold Toynbee. Paris: Mounton, 196, p. 226 Apud LE GOFF, op. Cit., p. 25.
[5] Cf. MARKSCHIES, op. cit., 151.
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Outra revista fundamental é a Revue d’Histoire Ecclésiastique. Sem dúvida para temas atuais você precisa dar sempre uma olhada no que aparece nela.
Na área de lingua inglesa a referencia é a Church History, publicada pela America Society of Church History.
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